Na manhã gelada do dia 15 de novembro
de 1873, Horatio Spafford não entendia o porquê, mas decidiu alterar a cabine
em que Anna e suas quatro filhas, Annie, Maggie, Bessie e Taneta iriam viajar.
O navio Ville Du Havre partiria dali a algumas horas rumo a
Europa, e ele sabia que tinha que agir depressa. Apertou o chapéu cinzento em
suas mãos enquanto esperava a resposta do responsável pelo navio, esperando ter
o seu súbito pedido atendido. O responsável pelo setor cochichou algo em
francês com outros dois funcionários, que olharam para Spafford e para sua
esposa e apenas ergueram suas sobrancelhas, mas nada responderam.
– Não precisamos disso, querido. –
Sussurrou Anna no ouvido do marido ao ver o olhar questionador dos funcionários
do navio. – A cabine está ótima para mim e para as meninas.
Spafford sorriu para a esposa.
– Sim, mas não me custa nada tentar. Tenho certeza de que a cabine no
alto terá uma vista muito mais bonita do Atlântico.
O que Spafford não disse a Anna foi que
sua decisão repentina vinha de um incômodo muito grande que estava sentindo
desde o amanhecer. Ele não queria,
porém, que Anna se preocupasse com isso.
Afinal, muitas coisas já haviam acontecido, e tudo o que ele queria era
poupá-la de mais preocupações. Spafford sentiu um alivio enorme quando o
funcionário entregou-lhe os novos
bilhetes, explicando os detalhes da mudança de cabine em um inglês meio
arrastado.
Ao guardar os novos bilhetes no bolso
do paletó, Spafford ajeitou seu chapéu no alto da cabeça virando-se para Anna.
– Agora sim! – ele sorriu, sentindo-se
em paz novamente. – Vamos buscar nossas meninas?
*
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Apesar de estar muito feliz – e visivelmente mais tranquilo – pela oportunidade de desfrutar de um período de férias na Inglaterra depois dos infortúnios que a família havia passado, Spafford sentia muito por não poder acompanhar Anna e suas filhas na viagem. O incêndio que destruíra sua cidade, Chicago, transformou em cinzas os investimentos de quase vinte anos. E mesmo dois anos depois, ainda era necessário cuidar de seus negócios antes de partir por um longo período de descanso. Além disso, seu coração ainda se apertava ao lembrar de seu filho de dois anos, que morreu de febre amarela pouco antes do incêndio.
Ele repetia para si mesmo que não
entendia o motivo de Deus ter permitido que tudo aquilo acontecesse, mas não
ousava questioná-lO. Nunca O questionaria. Deus os havia sustentado e os havia agraciado com uma viagem para que todos pudessem usufruir de um período
de paz e sossego, longe dos problemas e das perdas em Chicago.
A pequena Taneta, de dois anos,
no colo de Anna, grudou seus olhinhos no gigantesco navio atracado no cais.
Annie, Maggie e Bessie cantarolavam e conversavam sobre o navio, e sobre tudo o
que poderiam fazer ao chegarem à Inglaterra. Anna e Spafford sabiam que nem o
tempo, nem a distância se colocariam entre os dois. Em meio às despedidas davam
instruções um ao outro.
– Avise-me quando chegarem lá. E não se
esqueça de fazer anotações das pregações de Moody para mim. – Ele disse ao
beijar Anna e Taneta carinhosamente.
Anna sorriu e respirou fundo, tentando
segurar o choro.
– Ajeite a gravata. E cuide-se bem
enquanto estivermos fora.
Spafford sorriu e abraçou as outras
três filhas com um abraço coletivo. As meninas se penduraram em seu pescoço e disputaram
espaço para lhe darem um beijo de despedida.
– Minhas queridas ovelhinhas, – disse
Spafford, – que o nosso Deus as acompanhe.
Um sinal longo vindo do navio ecoou
pelo céu cinzento no porto de Nova York, chamando os últimos passageiros.
Anna abraçou novamente o marido, e
junto com as meninas caminharam para a fila de embarque no acesso para o Navio.
Spafford, com as duas mãos apertadas nos bolsos da calça, segurou as emoções
esperando até que elas tivessem subido a bordo do navio. Annie e Maggie
apareceram com suas cabecinhas acima do corrimão sorrindo e acenando, enquanto
apenas a mãozinha de Bessie aparecia. Spafford não conseguiu segurar o riso e
acenou de volta. Logo, a figura de sua esposa e suas filhas misturou-se com a
dos outros passageiros, e ele não mais as viu. Em alguns minutos, o navio Ville Du Havre começaria a se distanciar da
costa.
*
*
*
Era dia 2 de
Dezembro e Spafford analisava alguns
documentos em seu escritório. Estava com os olhos cansados quando percebeu que
havia lido o mesmo parágrafo pela terceira vez. Tirou os óculos e apertou
freneticamente os olhos com os cotovelos apoiados na mesa. Não adiantava tentar
focar nas coisas do trabalho, pois simplesmente não conseguia parar de pensar em
sua esposa e filhas. Já fazia mais de vinte dias que elas haviam partido e ele
já deveria ter recebido alguma notícia da chegada. Empurrando sua cadeira para
longe, Spafford levantou-se para buscar um café. Quem sabe isso não o ajudaria
a se despertar e manter a concentração? Assim,
caminhou até o hall de entrada, passando pelo
corredor com a cabeça baixa, e os pensamentos borbulhando. Quando levantou a
cabeça, percebeu que as conversas sussurradas de seus colegas de trabalho silenciaram.
Estavam todos com olhares pesarosos, pareciam assustados. O que estava
acontecendo ali?
Um desconhecido o aguardava no meio do hall. Ele
fez uma rápida reverência com a cabeça, pediu desculpas, e saiu pela porta.
O silêncio já estava sufocando Spafford. Ele sabia que tinha alguma
coisa errada. Sabia que o aperto em seu coração não era só impressão sua. Com a
respiração pesada, ele disse:
– O que aconteceu?
Outros três homens que também o aguardavam olharam um para o outro. Major
Whittle foi quem deu um passo à frente, colocou as mãos no bolso e encarou o
tapete antes de falar.
– Acabamos de receber uma notícia e...
Spafford mordeu os lábios. Ele podia ouvir seu coração pulsando.
– Dez dia atrás, no dia 22, houve um acidente com o Ville Du Havre. – Whittle fixou seus
olhos nos de Spafford. - O navio colidiu contra um navio inglês e naufragou em
menos de 12 minutos.
Spafford sentiu um frio percorrer a espinha. Ele tentou abrir a boca
para dizer algo, mas nada conseguiu. Continuou apenas encarando o rosto de
Whittle, esperando que ele lhe dissesse mais alguma coisa. Qualquer
coisa.
– Não temos mais nenhuma informação sobre sobreviventes por enquanto.
Talvez amanhã.
Spafford apenas balançou a cabeça, sem saber no que pensar. Sussurrou um
"obrigado" e saiu do escritório, nem se lembrando mais do café que fora
buscar. Desceu as escadas e foi recebido por um vento gelado quando abriu a
porta principal. Esquecera seu casaco no escritório, mas nem se incomodou com o
vento cortante que raspava sua pele. Ele estava completamente paralisado por
dentro. Seus pés faziam o caminho de casa de forma automática. Tudo o que
passava em sua cabeça era o rosto de Anna e suas quatro meninas. As mãozinhas
acenando para ele poucos dias atrás.
A incerteza parecia ser a pior parte da notícia. Como ele poderia sentir
paz na incerteza? Como poderia esperar até a manhã seguinte para saber o
paradeiro de sua esposa e filhas quando seu coração estava em tamanha aflição?
Spafford olhou para os céus, imaginando Deus em seu soberano trono. Mas,
antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, uma voz ecoou em sua mente, dizendo:
"no mundo tereis aflições, mas tende
bom ânimo! Eu venci o mundo!". Mesmo sem compreender continuou
seguindo o caminho de sua casa, lembrando a si mesmo que não valeria a pena
criar especulações. Ele sabia que sua esperança estava em Cristo.
Spafford teve uma longa noite em claro, andando de um lado para o outro
conversando com Deus...
Pela manhã recebeu a visita de Major Whittle que lhe trazia um telegrama
assinado por Anna. Com um sobressalto, ele o pegou e as poucas palavras
saltaram a seus olhos:
"Salva sozinha. O que devo
fazer?"
Em meio a lágrimas e palavras de
consolo de seu amigo Whittle, Spafford ergueu o rosto, abriu os olhos
tristemente e, apesar de sua grande tristeza, conseguiu dizer:
– Eu fico feliz em confiar no Senhor
quando isso me custará algo.
*
*
*
Spafford embarcou no primeiro navio que encontrou em direção ao País de
Gales, onde Anna, sã e salva, o esperava.
O vento gelado do inverno chocava-se contra o seu rosto quando saiu para o convés com o Capitão do navio. O
frio era intenso e Spafford inutilmente dobrava os seus braços ao redor de si
mesmo, tentando esquentar-se em seu casaco. O capitão colocou suas mãos enluvadas
na mureta do navio e, silenciosamente, apenas observava o oceano. A noite tinha
um escuro aterrador e algumas nuvens cobriam a Lua. A neblina tornava impossível ver muito mais
do que alguns metros à frente, e Spafford sabia que ainda não havia sinal
nenhum de terra em qualquer lado que olhasse.
– Estamos no meio do Atlântico, em alto mar, praticamente na metade do
caminho entre a América e a Europa. - Disse o Capitão. - Aqui temos uma
profundidade de mais ou menos 3 milhas.
Spafford sentiu as lágrimas surgirem em seus olhos. O Capitão continuou:
– Creio ser esse o exato ponto da colisão. Onde o navio Ville Du
Havre naufragou. – O Capitão encarou as ondas batendo com força no
casco do navio. – Eu sinto muito pela sua perda.
Spafford fixou seus olhos no mar. Ele tentou imaginar aquelas ondas
violentas engolindo o navio destroçado.
Tentou visualizar sua esposa inconsciente, sendo resgatada sozinha, enquanto
suas lindas meninas se afastavam para longe dela. Tentou inutilmente imaginar a
dor e o sofrimento não só de suas filhas, como de todas as outras pessoas que
perderam suas vidas naquele lugar.
Seu coração estava triste. A dor esmagava-lhe por dentro de uma forma
que nunca imaginara sentir. Mas algo surpreendente e ainda maior que a dor
alcançava seu interior. Algo que ia muito além de sua compreensão.
As ondas, agora tranquilas, apenas lhe transmitiam paz. Ele sabia que
suas filhas estavam nos braços do Senhor naquele momento! O melhor lugar onde
suas queridas meninas poderiam estar. Elas haviam sido entregues ao Senhor
desde que nasceram. Elas nunca pertenceram a ele, afinal.
Sempre foram do Senhor. Disso ele tinha certeza. E era isso que o
confortava nesse momento de profunda dor e concreta separação.
*
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*
*
Chegando à sua cabine, Spafford sentou-se na pequena cadeira e orou ao
Senhor, louvando-O pela tão grande paz que sentia. Com uma pena e um tinteiro escreveu
uma mensagem para que sua cunhada, Rachel, entregasse para o restante da
família.
Na quinta-feira passamos perto do local onde o navio naufragou: no meio
do oceano, a água tem 3 milhas de profundidade. Mas quando penso nas nossas pequenas
queridas, não as vejo ali. Elas estão seguras e abrigadas, as queridas
ovelhinhas, e em breve também estaremos lá. Nesse meio tempo, graças a Deus,
temos a oportunidade de louvá-lO e de agradecer por Seu amor e Sua misericórdia
por nós e pelos que amamos. Eu O louvarei enquanto viver. Que todos nos
ergamos, deixando tudo e seguindo-O.
Ao terminar a carta, tirou a folha do bloco de notas que carregava e a
dobrou. Spafford, porém, manteve fixo o
olhar na folha em branco que estava em sua frente. Seus dedos ainda seguravam a
pena e sua mão formigava, ansiosa por escrever mais. Ele desejava ardentemente colocar no papel tudo o que se passava em sua
mente e em seu coração. Sua alma transbordava de uma paz humanamente
incompreensível, dadas as circunstâncias. Então, como uma oração, começou a
escrever.
Se paz a mais doce
me deres gozar
Se dor a mais forte
sofrer, oh! Seja o que for,
Tu me fazes saber
que feliz com Jesus sempre sou!
Embora me assalte o
cruel Satanás
E ataque com vis
tentações;
Oh! certo eu estou,
apesar de aflições,
Que feliz eu serei
com Jesus!
Meu triste pecado
por meu Salvador
Foi pago de um modo
cabal;
Valeu-me o Senhor,
oh! mercê sem igual
Sou Feliz! Graças
dou a Jesus!
A vinda eu anseio
do meu Salvador,
Em breve virá me levar
Ao céu onde vou
para sempre morar
Com remidos na luz
do Senhor.
“o Senhor o deu, e o Senhor o
tomou: bendito seja o nome do Senhor.”Jó 1:21
Nota da autora: Por muito tempo,
tenho pensado na história do autor desse belo hino que tanto toca o meu
coração. Queria poder compartilhar com outras pessoas essa linda história, e
aqui encontrei a oportunidade. Tentei ao máximo incluir detalhes precisos dos
fatos, mas, para transformar os fatos em uma história, precisei incluir
elementos narrativos. Espero que a história desse homem possa ter falado ao seu
coração da mesma forma que falou grandemente ao meu.
Revisado e corrigido por Ana Paula Alves
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